Hélcio Padrão
Consultor da Nexo Consultoria e Escola de Negócios
“…Compreendemos então a futilidade dos objetivos numéricos … e, fundamentalmente, o que mais nos marcou, foi a compreensão profunda de que, sem melhorar os processos não se fazem melhorias de caráter permanente que não tenham consequências, às vezes desastrosas, em locais não visados.”
Edson Vaz Musa[1]
Ex. presidente da Rhodia S/A
[1] Ex-presidente da Rhodia S/A, fez parte dos Conselhos de Administração ou Consultivo de várias empresas como a Editora Abril, WEG e Natura.
Em 1982, um dos maiores gênios da administração, o Dr. William Eduard Deming, publicou em seu livro “Out of the Crisis” (publicado em português com o título “Qualidade: A Revolução da Administração”) seus 14 princípios para a Qualidade, no qual o 11º diz: “suprima as quotas numéricas para mão de obra” [1].
A montadora Toyota, que tem seu modelo de gestão baseado no Dr. Deming, adotou há anos esse princípio e por isso não atua com metas de número. Porém, em 2010, quando estava próximo de se tornar a montadora número um do mundo, ela caiu na tentação de estabelecer cotas numéricas, e o resultado foi desastroso: o que se viu foi a queda da qualidade e muitos carros começaram a apresentar problemas, o que levou a empresa a paralisar a produção de vários modelos. Após alguns estudos, a causa foi justificada pelo professor Takahiro Fujimoto, do Centro de Pesquisas de Gerenciamento da Manufatura da Universidade de Tóquio:
“O mais importante de tudo é que a nova posição da Toyota como líder mundial parece ter influenciado seus líderes a perderem a visão da forma de pensamento fundamental na empresa. O pensamento da Toyota sempre foi “buscar a qualidade, e a quantidade é consequência”. Mas a busca iminente de se tornar a montadora número um do mundo levou alguns gestores a substituir a primeira política da qualidade da empresa com a frase “planeje para o volume e atinja o volume”. O resultado foi a busca por quantidade com prejuízo da qualidade – uma falha que foi amplificada pelos efeitos multiplicadores de projetos cada vez mais complexos e crescimento rápido dos volumes.[2]”
Eu sei que algumas pessoas podem então se perguntar: ‘mas como assim’, se quase todas as organizações dos dias de hoje atuam focadas em metas numéricas? A ideia aqui não é demonizar as metas de número – até porque elas funcionam em determinadas circunstâncias que vou abordar mais à diante – mas apenas demonstrar como Deming estava certo ao afirmar que, na verdade, “as metas de número” criam obstáculos para qualidade e melhores resultados e sugerir outros caminhos possíveis e mais exitosos.
Antes de adentrar no tema eu convido o leitor a refletir com imparcialidade: você realmente acredita que as metas de número funcionam? Se grande parte das organizações atuam com metas de número, por que elas não estão sempre em desenvolvimento? Você percebe um grande esforço pela qualidade em uma empresa, totalmente focada em metas de número?
O Conceito de Sistema:
Para compreender sobre o efeito das metas de número na melhoria de uma produtividade, se faz necessário compreender o conceito de “sistema” e como ele se comporta.
Ao fazermos uma medição da produtividade de uma equipe, por exemplo, podemos facilmente calcular a média da produtividade por pessoa. Através dos cálculos de desvio padrão podemos obter um número que, somado à média irá estabelecer o “limite superior” (LS) e, diminuído da média irá estabelecer o “limite inferior” (LI). Quando a maior parte da amostragem medida se apresenta entre os dois limites – superior e inferior -, isso significa que “existe um sistema organizado” e, da mesma forma, mas no sentido oposto, se a amostragem se apresentar muito dispersa, e a maior parte da amostragem se apresentar fora dos dois limites, isso significa que esse “sistema não é organizado”, ou seja, cada pessoa atua dentro de um processo próprio não organizado. O gráfico de Pareto – também conhecido como gráfico de “dispersão” – abaixo é um exemplo de um processo organizado.
E o que mais esse gráfico de Pareto nos diz? O resultado apresentado demonstra que esse sistema, da forma como está organizado, tende a gerar um resultado próximo do número apurado[1], ou seja, o resultado total sempre tenderá a ser um número próximo ao medido, e que um resultado superior somente será possível se o sistema (ou os princípios que organizam o sistema)for melhorado.
Então qual é o efeito das metas de número? As metas de número criam algum estímulo nas pessoas, que tendem a serem mais ágeis. mas mantendo o sistema como está; as pessoas tendem correr para atingir os números, em ninguém se permite parar para pensar e melhorar. Um outro efeito observado é que um excesso de pressão pelas metas pode estressar o sistema, causando prejuízos nos médio e longo prazos; e última instância, se a pressão for muito alta, é comum observar as pessoas manipularem os números ou agir de forma antiética para atingir o número esperado, e dessa forma diminuir a pressão sobre elas e mitigarem os riscos de perder seus empregos[1]. Outro efeito das metas de número é querer alcançá-las a qualquer custo, muitas vezes através de promoções e descontos que comprometem a lucratividade e, consequentemente, a qualidade do negócio.
O impacto do sistema sobre a produtividade:
Parafraseando Albert Einstein, como é possível resolver uma questão com o mesmo estado de consciência que criou o problema? Para melhorar os resultados de um sistema, o sistema deve ser melhorado. E daí vem uma importante pergunta: de quem é a responsabilidade da mudança de um sistema de gestão de um setor ou de uma organização? Da alta gestão, é claro, pois somente eles possuem esse poder.
Vamos dar um exemplo: imagine um setor de compras que adquiriu peças mais baratas (talvez para atingir metas de redução de custo), mas que essas peças criam inúmeros problemas, aumentando o custo de produção de forma significativa. De quem é a responsabilidade por comprar as peças pelo menor preço? Com certeza o comprador busca apenas seguir as orientações alta gestão: “compre pelo menor preço”. Para mudar esse cenário talvez a diretoria pudesse mudar a política de compra para “compre pensando no menor custo total da empresa”; esse princípio irá instigar a criação de um novo processo que envolva as outras áreas impactadas nas compras, contribuindo para uma melhor lucratividade da empresa.
Sistema e Pessoas
Agora que compreendemos mais sobre um sistema, temos que lidar com outra pergunta relevante: o que gera mais impacto nos resultados, a performance de um indivíduo ou um sistema (e forma que ele está organizado)? Antes de responder a essa questão, pense sobre uma outra: o que faz com que possamos adquirir uma TV por pouco mais de R$ 1.000,00, o sistema de produção ou a performance das pessoas? Quanto custaria uma TV se uma única pessoa decidisse fazê-la por completo, do início ao fim do processo? Acredito que, se não todas, a maioria das pessoas concorda que o processo é o fator mais determinante no preço de um produto. O Dr. Deming “concordava com seu colega Joseph Juran, que apenas 15% do resultado de uma produtividade é de responsabilidade dos trabalhadores, e 85% do sistema criado pela administração”, e depois passou a considerar 98% responsabilidade do sistema criado pela alta gestão[2], o que nos leva a concluir que os maiores problemas de
produção são consequências dos processos e como eles foram organizados do que das pessoas[1].
Como melhorar os resultados:
Atingir uma performance superior é sempre possível, mas não é algo trivial. Esse é um assunto muito vasto, mas vou trazer aqui, de forma bem sintética, alguns aspectos relevantes.
Em primeiro lugar é necessário substituir o modelo de chefia, que é aquele modelo onde um manda e cobra, pelo modelo da liderança. Um verdadeiro líder, que as pessoas querem seguir pelo amor e não pelo medo, é aquele que orienta e está sempre disposto a apoiar o liderado em seu processo de desenvolvimento. Ao invés de criticar, ele busca fazer perguntas de forma a construir juntos as melhorias. Ele luta para romper as barreiras do medo que muitas vezes impede as pessoas de falarem o que pensam, e estimula a criatividade de todos e o orgulho pelo trabalho.
Um bom líder está disposto a, junto com sua equipe, observar e compreender as causas raízes dos problemas de seus processos, e tem abertura para melhorar o sistema de gestão como um todo. Ele não quer somente para si os louros dos sucessos, mas compartilha com todos o sabor de cada vitória. A melhoria da qualidade depende de líderes com essas qualidades.
Também se faz necessário adotar um processo de governança dos projetos e das áreas, instituir um ritmo para avaliação e melhorias dos processos, envolvendo aquelas pessoas que tenham condições contribuir para melhoria do sistema. Tudo pode ser melhorado, desde que se criem condições para o desenvolvimento.
É preciso ressaltar que não ter metas de número não significa abolir os números, pelo contrário: um processo de qualidade somente pode acontecer se houver como medir e gerenciar os processos a partir de indicadores estratégicos. Vale lembra que, como o próprio Dr. Deming disse, não se pode gerenciar o que não se mede. Por exemplo, é possível concluir que a margem de lucro precisa ser melhorada em 20%, mas isso não significa que isso deva se transformar em uma meta. Alcançar esse número 20% é apenas a consequência de uma outra meta, e nunca o fim. Ao olhar apenas para o número, o grupo tenderá atuará às cegas. A pergunta que fará evidenciar a meta é outra: o que a organização precisa fazer diferente, o que precisa ser mudado em seu modelo de gestão para que se possa alcançar a melhoria de 20% na margem de lucro? A resposta a essa pergunta é que irá revelar a meta, é essa imagem de um futuro transformado que deverá ser perseguida e que poderá gerar o número almejado. Agindo assim o grupo usará toda sua inteligência para desenvolver soluções impactantes e de efeito de curto e longo prazos; todos saberão o que precisa ser feito para alcançar o resultado. Assim utilizamos a inteligência e não a ‘correria desenfreada e sem rumo’.
O desafio da melhoria constante e da inovação é desenvolver novos modelos de gestão que envolvam cada vez mais as outras pessoas e estimule a cooperação de todos para executar a estratégia organizacional. Muitas cabeças pensando, de forma cooperativa, alcançam resultados superiores. Incentive suas equipes a reconhecerem os seus problemas para transformarem a realidade e alcançarem resultados surpreendentes num clima organizacional que as pessoas terão prazer em atuar.
Sei que não é fácil, mas podemos começar pelo 1º passo. Tudo é possível se houver uma verdadeira força empreendedora! Arregace as mangas e bom trabalho.
[1] Não quero aqui diminuir o valor das pessoas, até porque são elas que criam os processos, mas apenas perceber os impactos de um sistema sobre os resultados finais.
[1] Um relato sobre esse ética e metas de número pode ser observado no documentário sobre o caso do banco Wells Fargo na série “Na rota do Dinheiro Sujo”, produzido pela Netflix.
[2] Glasser/William – “Administração de Liderança – Qualidade e Eficácia com uma Moderna Técnica de Controle – Ed. Best Seller – P.26
[1] Deve-se também ser levado em consideração que todo sistema também sofre efeitos externos, como sazonalidades e outros fenômenos que interferem nos resultados finais.
[1] Deming/William E. – “Qualidade: A Revolução da Administração” – Ed. Marques Saraiva – p.53
[2] Fonte: https://www.lean.org.br/artigos/396/problemas-da-toyota-lutando-contra-os-demonios-da-complexidade.aspx